Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que
me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda
criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o
rei Salomão. "Fabricou Salomão um palácio..." E fui lendo, até ao
fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma
felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar.
Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das
ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele
assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de
instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando,
ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a
saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira
vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um
alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria
que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem
pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não
quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em
ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a
sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro
directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E
a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo
qual é senhora e rainha.
Livro do Desassossego
de Bernardo Soares
de Bernardo Soares